sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O Ovo e a Galinha (Clarice Lispector)


De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.

“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.

A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.

Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.

De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.

Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.

Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Memórias Pré-Natais de Crás Bubas (James Berkley)




Prefácio


Não foi o excelentíssimo Brás Cubas que decidiu começar a contar a sua vida em ordem regressiva, para não ser tão piegas quanto os outros foram? Pois bem... Por que não fazer o contrário? Que mal há em contar a minha história de frente para trás, mas antes mesmo que ela comece? Bem, má ideia não é, com toda a certeza, e mais! Eu seria muito mais criativo do que o próprio Brás, e creio que, caso esteja lendo a minha obra, o seu fantasma afunde-se em raiva e ciúmes. Ele foi direto ao ponto, mas eu não sou do tipo de pessoa que copia os outros. Sou Crás Bubas, o grandioso! E quem nasce criativo permanece criativo, não é mesmo? Talvez não.
Nosso caro Brás chegou a comentar que seu livro seria lido por talvez dez, no máximo cinco pessoas, mas eu vou além! O meu relato não será um livro, não, para o desapontamento de vocês, mas não se preocupem! Uma imagem significa mais do que mil palavras! E aí vocês falam: “Mas Crás, um relato é feito com palavras!” E sim, eu concordo! Mas palavras que transmitem uma imagem! Ah, por essa vocês não esperavam. Não subestimem a minha inteligência, meus caros.
Insisto que sou inovador, antes que as más línguas me acusem de plágio. Alguém se lembra de alguma vez ter lido uma história narrada não por um morto, mas por um não-vivo? Pois é justamente o que sou! Não nasci ainda para ter morrido, portanto sou um não-vivo. Eis aqui que lhes apresento mais um fator que diferencia a minha narrativa da de Brás Cubas! O excelentíssimo disse outrora que o maior defeito do seu livro era o belo leitor, que buscava uma narrativa direta quando a história dele era lenta, demorava a passar. Pois aqui é justamente o oposto! Eu amo você, caro leitor, e creia-me que, assim que essa introdução enfadonha terminar, minha história passará tão rápida, mas tão rápida que poderá até mesmo passar despercebida! Ah, que lástima...
Bem, agora, finalmente, chegamos ao último parágrafo do meu prefácio e não tardará para que comece a verdadeira história. Sei que você, meu caro leitor, deve estar ansiosíssimo para ler o que eu tenho para dizer, então prepare-se, pois aí vai.

Fim do Prefácio

Memórias Pré-Natais de Crás Bubas

Nasci.

Fim.

Ecos de Outrora (Cor Contritum)


Uma explosão de som inundava o teatro, os violinos rasgavam o ar com seus acordes dilacerantes, em segundos a orquestra inteira acompanhava a soprano em seu frenesi teutônico repleto de notas altas e ameaças líricas, a platéia permanecia muda, alguns até pareciam estar amedrontados pela performance muito forte da excelente atriz/cantora.

Enquanto a soprano continuava sua interpretação dos versos raivosos de Schikaneder o Conde olhava de seu camarote para a platéia do espetáculo dessa noite, não se surpreendeu, era muito parecida com a de todas as noites; nos melhores camarotes e nos assentos mais pertos da orquestra se encontrava a Nobreza com dinheiro (que o Conde se orgulhava de ser parte) depois vinha a nobreza que já perdera sua glória financeira e aqueles membros da burguesia que compraram títulos e por fim vinham os burgueses com bom gosto e nos piores lugares os admiradores da classe média. Essa estrutura tinha permanecido assim por 300 anos e nenhum dos participantes via um motivo para mudar, era o justo. A ópera continuou tão boa quanto começou: um espetáculo magnífico; no fim os aplausos trovejaram tanto quanto era o justo. Delicioso entretenimento pensou o Conde não só pela as belas atuações ou a música sublime, quanto pela chance de ver e ser visto por uma sociedade que permanecia intocada há séculos. O Conde saiu do camarote, viera desacompanhado, seus pais, o Duque e Duquesa estavam na Itália, e ele não estava disposto a procurar companhia para só uma noite na ópera. No corredor encontrou um Barão que conhecia, trocaram algumas palavras educadas e os dois saíram pensando pior de um do outro. Ao alcançar o salão de entrada da casa de ópera se dirigiu a grande porta entre as duas colunas de mármore e saiu para o vento noturno, chamou seu carro (essa era umas das modernidades que a nobreza não recusava) e no instante entre o carro vir o apanhar ele girou nos calcanhares e olhou através da porta de vidro adornado com um emblema dourado e lá viu toda sociedade em sem pleno esplendor, casacas pretas lustrosas adornavam os homens e as mulheres em seus vestidos majestosos, todos falando da ópera, comentando as interpretações elogiando a montagem e delirando sobre as próximas óperas no calendário; olhando para as paredes do teatro via grandes cartazes com letras douradas escrito Die Zauberflöte, o Conde respirou e sentiu que o ar na volta daquele teatro exalava não só a glória da música ali tocada, mas também todo a glória,respeito,poder,riqueza e hipocrisia da sociedade que o freqüentava, ele respirou novamente e procurou guardar aquele odor em algum canto especial da sua memória.

70 anos depois uma jovem com um vestido esvoaçante brilhava no meio da noite envolta em uma áurea de cabelos dourados, seus olhos faiscavam como diamantes e sua pele alva parecia emitir um espectro de luminescência na noite. Essa bela jovem conduzia um idoso com passos lentos até um teatro que fora recentemente reformado, era a segunda vez na semana que eles faziam esse trajeto, durante as suas férias a neta adorava ir ao teatro com o avô. O Avô agora era Duque e ele já tinha vivido duas guerras, perdido seus dois filhos e sua mulher e tinha criado sozinho três netos e pior, teve que ver a sociedade e música que amava definhar até seu atual estado agonizante, mas sempre que possível ele deixava a neta o guiar até o teatro para lhe mostrar alguma peça nova que ela achava ser excepcionalmente boa e para lhe mostrar a nova elite, que ele mantinha nos piores termos, uma vez que o achavam, não expressamente, mas nos olhares, uma relíquia de um passado remoto. Eles entraram no teatro, e a princípio tudo se mostrava intocado dos últimos 70 anos, pois sua memória era excelente ainda e lembrava-se de cada detalhe, eles foram para o camarote que antigamente tinha o brasão da família encravado em uma porta suntuosa de madeira, mas agora só tinha uma cortina de um tecido plastificado. A peça começou os artistas atuavam, todavia nada realmente o tocava, houve um momento em que no início de um monólogo ele pensou escutar um eco de Schiller ou Shakespeare, no intervalo do segundo ato ele poderia jurar que escutou um dueto de Mozart, e quando os aplausos soaram ele escutou as notas finais de uma obra de Tchaikovsky. Era por isso que ele vinha, em cada canto em cada vista ele enxergava um fantasma do passado e em suas memórias ele revivia tudo que agora se encontrava na história, na entrada do banheiro ele se lembrava das damas que agora eram não mais, nos corredores as vozes dos cantores líricos ainda soavam tão fortes e belas quanto antes, ecos de outrora, mas ecos preciosos para ele. A cortina caiu, o Duque acordou dos seus devaneios para ver a sociedade e freqüentadores do teatro novo saírem com seus “tennis” e calças jeans, ele riu, se lembrando da opulência dos vestidos que antigamente ali desfilavam. Quem sabe ele realmente fosse uma relíquia de um passado remoto, eles saíram do teatro e no tempo antes do carro vir os buscar ele novamente se virou para olhar pela porta de vidro que agora já não tinha mais o brasão dourado, mas não viu o brilho de antigamente, agora a entrada parecia lúgubre e desprovida de sentimentos, e os comentários sobre a apresentação eram ventos do passado, ele só escutou um único comentário “como será que está o jogo?”. Os cartazes elegantes não estavam mais fixados nas paredes, agora só havia algumas pichações esparsas. O Duque buscava na sua memória o cheiro que a casa exalava antigamente, e o reencontrou dentro de si, porém fora o único cheiro era de esgoto e decadência.

O carro chegou, neta e avô entraram e conversaram um pouco sobre a peça, o avô comentou que era parecida com a que tinham visto semana passada, a neta, transtornada, comentou que a peça da semana passada tinha sido uma comédia, enquanto a dessa noite uma tragédia, o Duque esboçou um sorriso gentil e falou qualquer piada, no entanto em sua mente pensava que não havia mais diferença entre tragédia e comédia atualmente, tudo era igual, tudo tinha mesmo cheiro.

Porque ela chora no quatro? (Autor Desconhecido)


... (ela chora no quarto; entro e pergunto)
- O que foi?
- Nada.
... (ela está na cama; chego mais perto)
- O que foi?
- Nada. Eu só... Nada.
- Eu escuto. Pode falar.
- Não... Eu não consigo.
... (sento ao lado dela; seu cabelo tapa o rosto)
- Calma.
- Não... Eles... Eles vão...
- Eles vão o quê? Quem são eles?
... (ela vira o rosto, não para mim; o choro não é mais intenso)
- Eles são maus.
- Quem é mal?
... (o choro recomeça; preciso acalmá-la)
- Pode falar.
- Não...
- Eles não vão te machucar.
- Eles... Eles vão sim! Eles são... São maus! Eles...
... (abraço ela; não posso vê-la assim; fico péssimo)
- Está tudo bem agora. Eu estou aqui. Eles não vão te machucar. Eu não vou deixar. Eles não vão chegar perto de ti. Eu prometo.
... (chorando, ela também me abraça; encosta a cabeça no meu ombro esquerdo; é minha vez de chorar; olho para frente, mas não olho para nada, um olhar de tristeza e raiva; bom)

- Corta!

Ótimo. Já acabou. Ficou perfeito. O diretor vai concordar.

- Fantástico! Ficou perfeito.

Já escuto as palmas da equipe. Ficou perfeito. Claro que ficou. Enganei vocês.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Todos nós comemos moscas (James Berkley)

Estava no escritório, dentro daquele cubículo desgraçado. O barulho das teclas dos computadores era insuportável. Não a princípio, mas depois de dois anos enfurnado nessa salinha de paredes de compensado qualquer um enlouquece com os malditos barulhos rotineiros. Era hora de sair e me levantei, olhando ao redor e procurando pelo meu chefe. Não que eu quisesse vê-lo, queria mesmo era evitá-lo! No último mês o desgraçado me fez trabalhar todos os sábados!
Andei sorrateiramente, vez ou outra cheguei até mesmo a engatinhar, tentando ao máximo passar sem que me vissem. Até mesmo ignorei quando meus colegas se despediram, fingindo que não ouvi. E cheguei a achar que tinha me livrado, mas fiz a pior coisa que poderia ter feito. Me levantei, achando que o ambiente já estava livre da praga e... grande erro. Caí como um pato na armadilha, o maldito tinha ficado ali, bem no meu ponto cego naquele resquício de parede ao lado da porta! Ai, que ódio! No momento, bem no maldito momento em que me levantei para tentar conservar um mínimo de dignidade, ele me viu. O grande filho-da-mãe me viu e bradou o meu nome, vindo na minha direção com aquele sorriso canalha, aquele sorriso de quem vence uma disputa, mas não quer parecer convencido.
- Anna! – Tive vontade de socar a cara dele, mas era capaz que aquelas bochechas enormes engolissem a minha mão.
Sorri. Acho que foi o sorriso mais amarelo que já dei em toda a minha vida.
- Chefe! Mas que surpresa agradável... Não esperava vê-lo aqui, estava certa de que o senhor já tinha ido para casa.
- Quase fui, Anna. Sabe, cheguei a tirar o carro da garagem quando me lembrei da grande ajuda que você tem me dado nesses finais de semana e resolvi chamá-la para mais um sábado aqui conosco! Sei do seu grande amor pela empresa e fico muito feliz ao ver meus empregados dando duro. Ah, se todos aqui da empresa fossem como você, as coisas andariam mais rápido.
Se todos da empresa fossem como eu, o lugar certamente já estaria em chamas. Respira Anna, respira... Conta até dez. Um... Dois... Três... Quatro... Chefe desgraçado, o diabo tem um lugar especial no inferno para você! Senti o rosto avermelhar de raiva e rapidamente pensei em alguma coisa para disfarçar.
- Ah chefe, fico lisonjeada... É tão bom quando nosso trabalho é reconhecido. Pode contar comigo sábado, ficarei contente em vir trabalhar.
Mas que merda, Anna! Te coordena, mulher! Você não quer mais trabalhar nos sábados! Diga isso a ele, vamos, diga! Desembucha, coloca tudo para fora e... Não, não posso. Se eu colocar tudo para fora, esse homem sai daqui num saco preto.
- Até amanhã, então.
O velho gordo estúpido foi se arrastando como uma morsa para fora do prédio e eu fiquei ali, olhando aquela bunda pelancuda se afastando. Até se o meu chefe fosse um Rodrigo Santoro ou algo do gênero, mas não, tinha que ser o tipo do Jô Soares! Quem sabe amanhã eu não me afogo naquela banha toda...
Suspirei.
Não, não posso me afogar. Preciso do dinheiro para pagar o aluguel, comprar comida... Se bem que engolindo mosca desse jeito, o dinheiro para o rancho chega a ser dispensável...

O Policial Saiu da Sala (James Berkley)

Sobre homens e formigas

A luz era precária e dentro daquela salinha o ar parecia prestes a terminar, mas não estava. O cheiro pútrido daquela sala podia deixar qualquer um sufocado. Uma formiga caminhava por cima da mesa e o barulho daquelas malditas patinhas era ensurdecedor, e ele não se segurou. O que seria mais uma morte para ele? Esmagou-a com o dedão e suspirou aliviado ao ouvir o clect que o pequeno animal fez ao ser impiedosamente esmagado.
Tic... tac... tic... tac... tic... Qual era o problema com aquele relógio desgraçado?! Por que ele tinha que fazer tanto barulho?! E onde estava aquele filho da puta?! O homem olhou a sala inteira ao seu redor e tudo o que viu foram as paredes cinza, cinza, cinza! Cigarro. Alcançou um cigarro no bolso e acendeu-o com o isqueiro. Lançou um olhar macabro à formiga morta e botou fogo no corpo diminuto, assistindo em silêncio enquanto ele queimava. Qual era o problema naquilo? Ela já estava morta mesmo, não era como se fosse gritar de dor.
Tragou profundamente, sentindo um relaxamento gostoso percorrer todo o seu corpo. Tic... tac... tic... tac... tic... De novo aquele relógio misterioso. Levou a mão à boca para retirar o cigarro e viu onde estava o relógio. No seu próprio pulso, quem diria! Como pôde esquecer do próprio relógio? Furioso, apagou o cigarro em cima do corpo carbonizado da formiga e se levantou num acesso de fúria, arrancando o relógio do pulso e jogando-o com força na parede. O barulho do vidro espatifando-se contra o cimento ecoou por toda a sala, e o que reinou depois foi o silêncio.
A atmosfera estava mais turva agora por causa da fumaça do cigarro, e o homem sentiu nos olhos uma ardência, eles provavelmente estavam ficando vermelhos. O suor gelado escorria pela a face dele e lhe atingia os lábios, salgado e espesso. As vestes já lhe colavam ao corpo por causa da transpiração, e respirar se tornava uma tarefa difícil. Ele mal podia ver agora, a fumaça que o cigarro produzira naquela salinha o deixava cego. E talvez também a ansiedade. Passou as mãos no rosto para secar o suor e de repente BANG! Sangue. BANG! Tiros. BANG! Corpos. Lembrava do último assassinato que cometera, o único que tinha acontecido sem intenção e o único pelo qual fora pego. Não queria ter matado aquela senhora, ela apenas... apenas viu o que não deveria ter visto.
Mais um som se assomava aos outros agora, e parecia ser o rufar de um tambor. Quem seria o idiota que estaria a tocar tambor numa hora como aquela? Quem seria a pessoa sem noção que desejava fazer tanto barulho? E o som ficava cada vez mais rápido, saindo do ritmo e voltando para ele, uma desordem total. O homem correu até a porta blindada e gritou, exigindo sair. Esmurrava a porta com todas as suas forças, e mesmo assim nada acontecia. Correu então a um outro canto do quarto e se encolheu ali, as mãos pressionando os ouvidos com força, mas isso só fez com que o barulho aumentasse. Gritou, gritou o mais alto que conseguiu, e mesmo os mais selvagens brados não conseguiram abrandar aquele som esmagador.
Agora não tinha mais noção de tempo. O relógio estava em estilhaços no chão, e não havia nada que indicasse as horas. O tambor estava mais e mais rápido, e o homem mantinha os olhos arregalados, no mais completo pavor, e começou a correr ao redor da pequena mesa de metal dentro da sala. Um som novo, rápido, seco. Os tambores pararam. O homem estava no chão, o rosto virado para o lado, os olhos abertos, opacos, desfocados. Uma pequena poça de saliva formava-se próxima ao rosto do homem. Uma formiga boiava na poça.

Mais uma missa do galo (James Berkley)

Já passava das 7 horas da noite e marido e mulher estavam na mesa, degustando o jantar recém preparado. Foi então que ouviram batidas na porta, nada violento, batidas leves, e o marido levantou-se para atender. Assim que abriu a porta deu de cara com um jovem rapaz na flor dos seus 20 anos de idade. Estava incomodado, é claro, por ter tido seu jantar agradável interrompido no meio, mas não deixou transparecer.
- O que faz aqui a essas horas, Tomás? – A voz do homem soou gentil, casual.
- Desculpe interromper o seu jantar, senhor. – Começou o menino. – Só vim aqui para lembrá-lo da missa do galo de hoje.
- Ah, sim. – Disse o homem, rindo-se um pouco e deixando o pobre Tomás sem saber onde estava a graça. – Agradeço pelo lembrete, eu e minha esposa estaremos lá com toda a certeza.
Os dois se despediram sem mais delongas e o homem voltou a sentar-se à mesa. Estava prestes a fazer um comentário sobre o ocorrido quando ouviu a voz curiosa da mulher, que por estar na sala de jantar e ter perdido parte da audição com a idade não ouvira a conversa.
- Quem era, querido?
- Era apenas o Tomás para nos lembrar que hoje tem a missa do galo.
A mulher riu do mesmo modo que o marido tinha rido minutos antes, à porta, na companhia do jovem Tomás. Era um riso casual provocado por uma lembrança, e o marido, entendendo o motivo das risadas, começou a falar.
- Nunca vou me esquecer daquela noite... Era noite de Natal, como essa, e o garoto que contratara para vigiar a sua casa viera me avisar que era dia de teatro. Ah, como as peças eram divertidas naquela época...
A narrativa do homem foi interrompida por um momento para que ele e a esposa pudessem rir do fato. É claro que qualquer um que ouvisse a conversa não entenderia o porquê dos risos.
- Eu tinha mandado a minha melhor roupa para lavar para usar na missa e ela já estava de volta comigo. A vesti depois do banho e aproveitei para usar aquela eau de cologne que você me deu numa das primeiras vezes que fomos ao teatro, lembra? – A mulher assentiu. – Depois que já estava pronto dei um tempo lendo um capítulo de uma das leituras que eu mantinha na época, Édipo Rei, lembro bem porque tinha ganhado o livro de aniversário da minha irmã que mora fora da cidade.
- Saí da minha casa sem apressar o passo para não parecer suspeito, embora a ansiedade fosse grande, e logo cheguei à sua morada. Estranhei ao ver a luz da sala acesa, já que você sempre me esperava com uma única vela na janela, e decidi rodear a casa para conferir. Acho que dei uma volta inteira antes de parar à janela, e foi quando vi você sentada. Me surpreendi com o jeito que se levantou assim que seus olhos encontraram os meus e...
- Acontece que eu tinha companhia. – Conceição interrompeu-o para comentar. – Vi você aparecer na janela e tive medo que não percebesse a presença do Sr. Nogueira. Imagine se você acaba me chamando? Como poderíamos explicar?
- É verdade. – Concluiu o homem. – Ele estava sentado de costas para mim, e eu não tinha idéia de que você estava acompanhada.
A voz do escrevente saiu com um quê de ciúmes, mas Conceição não se importou, ela sabia que nada acontecera naquela noite, a não ser a quase revelação do caso que eles mantinham.
- Eu estava meio enciumado, ainda mais quando você foi até a janela onde eu estava e mandou-me embora.
- Eu precisei! – Protestou. – Ele não podia ver você!
- Eu sei, eu sei... – Do modo como falava, parecia não fazer muito caso da questão e preferia deixar o ciúme de lado. Não era noite para brigas. – Mas eu não fui embora. Cheguei a ver vocês quase se beijando... – A voz do esposo agora adquiria um tom de acusação.
- Querido, você sabe como a minha falecida mãe tinha o sono leve, assim como eu tenho. E eu senti que você continuava por ali, teimoso do jeito que é, e mudei de lugar para tirar os olhos do Sr. Nogueira das janelas, e o homem, na sua inocência, sentava-se em outro lugar também, só para dificultar o meu trabalho. Uma hora eu realmente me assustei... Me levantei para trocar de lugar mais uma vez e foi então que vi o seu vulto no espelho. Eu podia jurar que era real, mas então me dei conta de que era só um reflexo. Meu corpo todo ficou arrepiado.
- Você sabe muito bem como eu gosto de quando você fica arrepiada... – Começou o marido, com um tom malicioso.
- Pare, querido! – Ela ria, um pouco nervosa, talvez, e tentou desconversar. – É noite de Natal... E foi sorte que eu consegui disfarçar, porque pude perceber que ele notara o meu leve susto. Continuei a falar com ele, a distraí-lo, e fiquei aliviada ao ver que você foi embora.
- Mas sim! Aquele rapaz não saía nunca, eu não iria esperar mais... Saí de lá e fui para a igreja, para a missa do galo.
- E não tardou para que o vizinho fosse chamar o Sr. Nogueira também. Voltei para o meu quatro e troquei de roupas para ir atrás de você, e acabei assistindo toda a missa enquanto lhe procurava. Uma lástima que só tenhamos nos encontrado mais para o final.
- Sim, é mesmo, e ainda mais tarde nós...
Mais batidas na porta, e alguém gritando lá de fora: “Missa do galo! Missa do galo!”
- Deus, como o tempo passa! – Riu-se Conceição, levantando-se da mesa. – Mais tarde arrumaremos isso, vamos! Não podemos perder a missa!
Os dois, já arrumados, deixaram a mesa com os pratos e talheres no lugar em que estavam, saindo para aquela celebração tão popular que lhes trouxera lembranças, histórias de uma missa do galo não muito recente, mas também nem tão distante.