segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Ecos de Outrora (Cor Contritum)


Uma explosão de som inundava o teatro, os violinos rasgavam o ar com seus acordes dilacerantes, em segundos a orquestra inteira acompanhava a soprano em seu frenesi teutônico repleto de notas altas e ameaças líricas, a platéia permanecia muda, alguns até pareciam estar amedrontados pela performance muito forte da excelente atriz/cantora.

Enquanto a soprano continuava sua interpretação dos versos raivosos de Schikaneder o Conde olhava de seu camarote para a platéia do espetáculo dessa noite, não se surpreendeu, era muito parecida com a de todas as noites; nos melhores camarotes e nos assentos mais pertos da orquestra se encontrava a Nobreza com dinheiro (que o Conde se orgulhava de ser parte) depois vinha a nobreza que já perdera sua glória financeira e aqueles membros da burguesia que compraram títulos e por fim vinham os burgueses com bom gosto e nos piores lugares os admiradores da classe média. Essa estrutura tinha permanecido assim por 300 anos e nenhum dos participantes via um motivo para mudar, era o justo. A ópera continuou tão boa quanto começou: um espetáculo magnífico; no fim os aplausos trovejaram tanto quanto era o justo. Delicioso entretenimento pensou o Conde não só pela as belas atuações ou a música sublime, quanto pela chance de ver e ser visto por uma sociedade que permanecia intocada há séculos. O Conde saiu do camarote, viera desacompanhado, seus pais, o Duque e Duquesa estavam na Itália, e ele não estava disposto a procurar companhia para só uma noite na ópera. No corredor encontrou um Barão que conhecia, trocaram algumas palavras educadas e os dois saíram pensando pior de um do outro. Ao alcançar o salão de entrada da casa de ópera se dirigiu a grande porta entre as duas colunas de mármore e saiu para o vento noturno, chamou seu carro (essa era umas das modernidades que a nobreza não recusava) e no instante entre o carro vir o apanhar ele girou nos calcanhares e olhou através da porta de vidro adornado com um emblema dourado e lá viu toda sociedade em sem pleno esplendor, casacas pretas lustrosas adornavam os homens e as mulheres em seus vestidos majestosos, todos falando da ópera, comentando as interpretações elogiando a montagem e delirando sobre as próximas óperas no calendário; olhando para as paredes do teatro via grandes cartazes com letras douradas escrito Die Zauberflöte, o Conde respirou e sentiu que o ar na volta daquele teatro exalava não só a glória da música ali tocada, mas também todo a glória,respeito,poder,riqueza e hipocrisia da sociedade que o freqüentava, ele respirou novamente e procurou guardar aquele odor em algum canto especial da sua memória.

70 anos depois uma jovem com um vestido esvoaçante brilhava no meio da noite envolta em uma áurea de cabelos dourados, seus olhos faiscavam como diamantes e sua pele alva parecia emitir um espectro de luminescência na noite. Essa bela jovem conduzia um idoso com passos lentos até um teatro que fora recentemente reformado, era a segunda vez na semana que eles faziam esse trajeto, durante as suas férias a neta adorava ir ao teatro com o avô. O Avô agora era Duque e ele já tinha vivido duas guerras, perdido seus dois filhos e sua mulher e tinha criado sozinho três netos e pior, teve que ver a sociedade e música que amava definhar até seu atual estado agonizante, mas sempre que possível ele deixava a neta o guiar até o teatro para lhe mostrar alguma peça nova que ela achava ser excepcionalmente boa e para lhe mostrar a nova elite, que ele mantinha nos piores termos, uma vez que o achavam, não expressamente, mas nos olhares, uma relíquia de um passado remoto. Eles entraram no teatro, e a princípio tudo se mostrava intocado dos últimos 70 anos, pois sua memória era excelente ainda e lembrava-se de cada detalhe, eles foram para o camarote que antigamente tinha o brasão da família encravado em uma porta suntuosa de madeira, mas agora só tinha uma cortina de um tecido plastificado. A peça começou os artistas atuavam, todavia nada realmente o tocava, houve um momento em que no início de um monólogo ele pensou escutar um eco de Schiller ou Shakespeare, no intervalo do segundo ato ele poderia jurar que escutou um dueto de Mozart, e quando os aplausos soaram ele escutou as notas finais de uma obra de Tchaikovsky. Era por isso que ele vinha, em cada canto em cada vista ele enxergava um fantasma do passado e em suas memórias ele revivia tudo que agora se encontrava na história, na entrada do banheiro ele se lembrava das damas que agora eram não mais, nos corredores as vozes dos cantores líricos ainda soavam tão fortes e belas quanto antes, ecos de outrora, mas ecos preciosos para ele. A cortina caiu, o Duque acordou dos seus devaneios para ver a sociedade e freqüentadores do teatro novo saírem com seus “tennis” e calças jeans, ele riu, se lembrando da opulência dos vestidos que antigamente ali desfilavam. Quem sabe ele realmente fosse uma relíquia de um passado remoto, eles saíram do teatro e no tempo antes do carro vir os buscar ele novamente se virou para olhar pela porta de vidro que agora já não tinha mais o brasão dourado, mas não viu o brilho de antigamente, agora a entrada parecia lúgubre e desprovida de sentimentos, e os comentários sobre a apresentação eram ventos do passado, ele só escutou um único comentário “como será que está o jogo?”. Os cartazes elegantes não estavam mais fixados nas paredes, agora só havia algumas pichações esparsas. O Duque buscava na sua memória o cheiro que a casa exalava antigamente, e o reencontrou dentro de si, porém fora o único cheiro era de esgoto e decadência.

O carro chegou, neta e avô entraram e conversaram um pouco sobre a peça, o avô comentou que era parecida com a que tinham visto semana passada, a neta, transtornada, comentou que a peça da semana passada tinha sido uma comédia, enquanto a dessa noite uma tragédia, o Duque esboçou um sorriso gentil e falou qualquer piada, no entanto em sua mente pensava que não havia mais diferença entre tragédia e comédia atualmente, tudo era igual, tudo tinha mesmo cheiro.

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