terça-feira, 26 de maio de 2009

Õnibus (James Berkley)

Era manhã, uma manhã como todas as outras. Bem, na verdade não, já que nenhuma manhã é igual à outra, nunca. Estava frio naquele início de inverno, mas não um daqueles frios de rachar, apenas... frio. Fui transferido de minha antiga escola para essa, já que o emprego do meu pai exigiu que mudássemos de cidade, e agora cá estou. Recebi um pequeno mapa para me localizar melhor por aqui, e foi seguindo este mapa que cheguei até a sala da coordenadora. Li o nome na placa que havia na porta, se chamava Camila, Camila alguma coisa. Eu não estava prestando atenção. Camila guiou-me até a minha sala de aula e apresentou-me à turma, e logo tomei assento em uma cadeira vazia no canto esquerdo da sala, perto da porta.
Ao meu lado estava sentada uma loira de farmácia que com o tempo percebi ter um piercing na língua. Ela falava e falava, mas eu não estava virado para ela, e sim para o professor que explicava a matéria, era alguma coisa relacionada com relevos do Brasil, mas nunca absorvo muita coisa do que me dizem quando não direciono a minha atenção completamente para o assunto.
A loira ainda falava, falou durante o período inteiro. Como será que ela conseguia falar tanto? Ela me alertou quanto a certas pessoas na escola com quem deveria ter cuidado, com quem não deveria falar... Me disse também quem eram os burros, os inteligentes e os estranhos. Estranhos. Senti como se essa palavra ecoasse na minha cabeça. Estranhos, estranhos... Por que eles eram estranhos? A dúvida perdurou por um par de segundos, mas odeio ter dúvidas, então coloquei em palavras:
- Por que eles são estranhos?
Não falei, escrevi em um papel para não atrapalhar a aula. Ela levou alguns segundos para me responder, e parecia fazer um enorme esforço para pensar. Tanto esforço que seu rosto chegou a se avermelhar com o ato.
- Porque são, oras. Eles não são normais.
Normais. Ótimo, mais uma palavra para me deixar encucado. Mas de certa forma estava correto. Ser normal é não ser estranho, e estranho é quem não é normal. Mas qual é o conceito de normalidade? Certamente que ele existe, não pode ser simplesmente uma palavra sem conceito. A partir desse ponto não prestei atenção em mais nada, perdendo-me completamente no mundo de meus próprios pensamentos.
Normal é aquele que não é diferente, que é comum... Mas o que é comum? Aquilo que é mais usual, e o que é mais usual é o que a maioria faz, então o normal seria ser como todos. Se somos como todos, certamente somos normais, mas aí vem a crítica da originalidade... Se tudo é igual, nada é original, mas se eu resolver ser original, logo serei diferente e, portanto, estranho. Que mundo mais injusto esse! Fiquei rodeando por esses pensamentos por algum tempo, não sei exatamente quanto, tudo o que sei é que vi as pessoas se levantando, e logo deduzi que o sinal tinha tocado.
Levantei-me da cadeira e saí da sala a passos lentos, ainda pensativo. Dois períodos de aula haviam se passado desde que eu entrara até o momento do recreio, e tudo vendo aquela garota loira falando e pensando sobre normalidades e esquisitices. Sentei num banco qualquer, o primeiro que encontrei que estava protegido pela sombra de uma árvore – sombra que era desnecessária, já que estava frio -, e continuei meu raciocínio.
Normalidade é um ponto de vista, pois, usando um exemplo, mesmo que o normal seja ter cabelos lisos, em uma reunião de pessoas crespas o “estranho” será aquele que tiver cabelos lisos. Voltei a levantar do banco e saí a caminhar até que me deparei com as pessoas que a loira tinha me apontado antes, os estranhos. Não seria mal educado apenas porque não tinham uma boa fama, e por isso disse “olá”. Minha voz certamente sairia estranha, com um som nasal. Assim me diziam que ela era, ao menos.
Esperava receber deles um olhar assustador, mas apenas sorriram de volta e me devolveram o cumprimento. Eram cinco deles, cinco pares de olhos embaixo daqueles cabelos pretos, alisados com chapinha. As meninas todas com franjas graciosas que paravam logo acima das sobrancelhas, e os meninos com cabelos curtos, sem nenhum penteado em especial. Todos eles, sem exceção, tinham piercings, alguns na sobrancelha, e uma das meninas tinha um no lábio, um bem interessante, de onde saía uma corrente que se ligava a uma espécie de coleira. Confesso que eles me deram um certo medo, aquela maquiagem pesada, os metais enfiados no rosto... Mas arquei com isso, e apenas sorri.
Uma das garotas estava falando, e mais uma vez eu não prestava atenção, apenas o silêncio dominava o meu ser, como sempre... mas decidi que queria prestar atenção. Fixei o olhar nos lábios da menina que falava e observei-os formando cada palavra, até que... ela usou o termo estranhos para referir-se a si mesma e aos amigos. Por quê? Se ser gótica era o normal para ela e os outros, por que ela usava aquele termo? Queria dizer então que ela mesma não achava aquilo normal? Se ela não julgava-se normal, era estranha porque queria, e sendo assim, só estava tentando chamar atenção. Não é mesmo?
Talvez não. Ela continuava falando, mas eu não ligava mais. Talvez, no fundo, ela não quisesse chamar atenção, e apenas se julgava estranha porque todo o resto do mundo o fazia, já era um tipo de convenção prática. Infelizmente o mundo se trata de pessoas enfiando coisas na cabeça de outras pessoas, como se estivessem enchendo um balão de ar. E as vezes elas acabam por esquecer que alguns dos balões podem acabar estourando.
As pessoas começaram a voltar para a sala de aula, e eu segui o fluxo. Passei o restante dos períodos no meu mundo particular de pensamentos e reflexões, como sempre, e o rumo deles dessa vez era agora não o conceito de normalidade, mas o fato de existir um conceito. Por que precisamos do normal? Se cada um fizesse o que quer, não seríamos normais ou estranhos, seríamos apenas... Pessoas. O professor responsável pelo último período fez um sinal de “adeus” para a classe, e presumi que fosse hora de ir. Já estava com tudo arrumado, apenas me levantei e saí andando com a mochila nas costas, pendendo mais para um dos lados do que para o outro.
Passei andando pelos terrenos do colégio, fiquei imerso em pensamentos simplesmente o tempo inteiro. Não que isso fosse algo incomum para mim, não, costumo fazer muito esse tipo de coisa. Teria muito o que pensar hoje sobre todo esse conceito de normalidade porque, afinal, é um assunto bastante amplo. Infelizmente, ao chegar na parada do ônibus eu já tinha consciência de todas as conclusões as quais chegaria. Aprendi a pensar muito rápido com o tempo. E por que eu ainda passaria o dia pensando nisso? Porque eu penso. Penso porque não escuto. Não escuto, então penso. Não posso ouvir nada, não quero ouvir nada. Nada.
Entrei no ônibus.

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*Peço desculpas ao Sr. Berkley por não ser possível atendê-lo quanto à fonte solicitada para a publicação de seus textos. Essa negativa se deve ao fato de o blogger não oferecer muitas opções além das tradicionais (Times, Arial, Trebuchet, Verdana).

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